sábado, 14 de junho de 2008

Som

O dia amanhece lentamente e já alguns se fizeram ao caminho para a escola onde nós conseguimos aprender os pormenores da Vida. Começa a aula e a professora imponente começa a desmantelar as palavras sábias oriundas do latim e consegue a nossa atenção explicando que o som é uma sensação auditiva produzida por vibrações mecânicas de frequência compreendida dentre determinados valores......
Foi a nostalgia destas palavras que me fizeram ver como a minha vida é rodeada de sons que me levam, muitos deles, ao desespero e a voracidade do meu pensamento em conseguir engendrar pensamentos decapitados de verdade e então o ralhar da professora toma o poder de minha imaginação alegando que eu estava desconcentrado na aula e eu memorizei palavras de desgosto e mantive-me calado.
No intervalo venho cá fora ver o corrupio do pessoal por um bocado de nicotina e conseguimos apercebermo-nos do tossir derivado do tabaco, da gargalhada hilariante daquele petulante amigo que consegue mascar pastilha durante horas e consegue dar conselhos como ninguém.
Depois do almoço venho tomar o café com minha mãe, vou desfolhando o jornal lendo as notícias e observando o espalhar da rádio e os velhos que conseguem estar horas a bafejar no cigarro como se tivessem a queimar o destino mergulhado no desprezo. Vou-me embora e reparo no caminhar dos transeuntes que o fazem porque estrepitosamente as nuvens correm em busca de um dilúvio. Bato a porta de minha avó e ninguém responde, vou até ao quintal ver se ela está lá, mas encontro um cenário desolador com uma azafama descomunal dos animais, a aflição das vitimas da chacina e o lacrimejar dos companheiros do galo Custódio. Encaminho-me para casa mas ainda oiço os animais conspirar o amarrar dos traidores e neste momento piso uma poça de lama e oiço chapinhar na água, era a minha mãe que veio ter comigo e disse-me para ir para casa. Deito-me a ouvir o assobio do vento a dilacerar o trigo e a acidez da chuva a bater no vidro, com o rufar da vida, o estalar da pele e o crescer da barba adormeço.
Minha mãe vem ao meu quarto com um respiração ofegante e a sua voz periclitante chamar-me para jantar. Sento-me à mesa e o barulho da televisão incómoda o meu beber de satisfação, o meu comer de contentamento e provoca a queda dos talheres em cima da mesa, o chocar do copo com o prato e ao abrir a garrafa o derrame da bebida, descontente vai largando sobre mim histerismos de impaciência porque quer ir ouvir as récitas do padre no terço e eu coçando a barba aceito as suas ordens para que ela possa ouvir o sino a tanger em sossego. O murmúrio da noite leva-me a deitar na cama e puxar do meu mp3. Ligo-o e começa a tocar o som que o mano Wilson me arranjou, é a “Vida é só uma (esta e mais nenhuma)” onde se prova que o Ribas e companhia continuam fortes e com uma poética espectacular. A música chega ao fim e prossigo o meu devaneio musical passando pelo tocar sombrio do piano de Sassetti na palavra dos Da Weasel acabando na música que o mano Fred me arranjou, onde os Rage estão fortíssimos conseguem um balbuciar inacreditável de palavras venenosas cuspidas em todas as direcções, o Tom a extorquir o melhor daquela guitarra estridente, o Tim a dissecar aquele baixo sufocante e o Brad a manusear ferozmente aquela batida frenética de uma bateria incansável e nisto o telemóvel começa a vibrar, uma mensagem do diabo feminino a pedir-me para que eu reconsidera-se e a pedir-me desculpa pelos seus actos e nesta parte o grande Zack de la Rocha a gritar “no more lies” e foi ai que começou a fogueira de ódio, o gemer de dor, o olhar perturbador, a velocidade do amor a esgotar-se, o sabor da desilusão, o latejar da solidão cravejada de melancolia desesperante de um poeta enterrado a muito e angustia da falta de coragem de ela ter mandado uma mensagem em vez de ter coragem de ouvir o ranger dos meus dentes de raiva e me dizer cara-a-cara tudo o que disse por digitação de números. Enquanto ramificava as ideias acabei por adormecer. Um adormecimento esquisito porque não consegui para de pensar nos tempos em que eu dedilhava o teu cabelo. O meu cérebro não descansa por causa do ruído do pensamento, do roer da consciência e do destroçar do arrependimento até que uma voz me disse que as más notícias podem ser boas se forem lidas de outra maneira.Acordo suado e perturbado com a confusão instalada em minha vida, capto os meus passos no soalho, agonia-me o som do autoclismo, consigo pressentir o adormecimento da água nos canos e estilizar o tempo em cada gota que cai da torneira como se fosse o aproximar do inferno do meu fim. Volto-me a deitar e passadas todas estas sensações auditivas conclui que o pior som do Mundo é o palpitar de um coração rejeitado e o melhor do Mundo é o palpitar de um coração apaixonado.

Sem comentários: